retirado de Istoéonline, 2042
Última Palavra
Zeca Baleiro
Poderosos chefs
– Antes de mais nada, não entendo por que chamar cozinheiros de “chefs”. Chefes de quê? De quem? Depois, como é que eles se tornaram deuses do nosso tempo? Tá bom, há ótimos cozinheiros por aí, mas...
– Não são apenas ótimos cozinheiros. Há verdadeiros artistas criando novos pratos, reinventando a cozinha, fazendo fusões de culturas, pesquisando ingredientes...
– Tá, reconheço que há gente talentosa, mas há um certo exagero no status atual dos cozinheiros, não acha? Os caras são astros pop, celebridades unânimes, grifes de luxo... São paparicados e tratados com um mimo que, em outro tempo, só os grandes e prestigiosos artistas teriam.
– Mas eles são artistas!
– Sei não, sei não. Há algo errado nisso tudo.
– Como assim?
– Não é estranho que os “artistas” de hoje façam comida e não arte?... Sem falar que os pratos estão cada vez mais mínimos e mais caros, uma loucura.
– É, a cozinha moderna é assim mesmo.
– Então prefiro a velha, mais vieille cuisine e menos nouvelle!... Precisamos criar uma Renascença na cozinha contemporânea, voltar aos velhos cozidos, ensopados, porções generosas... Mais condimento e menos comedimento!
– Não tem mais volta, darling. As pessoas querem novidade.
– É, eu sei, é por causa dessa sede de novidade que alguns medíocres com senso de oportunidade vencem, se estabelecem... Quer ver qual o truque mais banal usado hoje pelos grandes restaurantes? Cardápio! O cardápio é mais apetitoso que a própria comida. Ora, ninguém come cardápio, come?
– Você enlouqueceu.
– É verdade, vai por mim. Ah, outro truque banal é o uso de ingredientes exóticos, diferentões. Quanto mais esquisito melhor. Tipo “recheado com ervas hidropônicas das Ilhas Fiji” ou “picanha de lhama maturada nas ruínas de Machu Picchu” ou “ovas de esturjão centenário em mel de floradas de eucalipto”; e por aí vai...
– Que exagero!
– E ainda tem a balela das harmonizações. Em que Bíblia está escrito que não posso comer peixe acompanhado de vinho tinto? Paladar é como impressão digital, cada um tem o seu. Gosto se discute sim. E também se forja, se inventa. Esse papo é catequese hype, pra confundir a cabeça de quem não tem personalidade.
– Ih, pirou na batatinha... Papo mais conspiratório!
– E o pior é que a coisa que aparentemente as pessoas hoje mais prezam é “personalidade”, o que nego mais quer é ser “diferenciado”. Mas aí vai a um restaurante e pede o prato que todos pedem, porque ouviu dizer que é “o máximo”. Vai comprar um vinho, compra aquele que o sommelier que acabou de se formar num curso intensivo de 20 dias sugere, o que todos estão bebendo... Esse povo ama ter personalidade por uma razão muito simples: porque não tem!
– As pessoas querem cultivar o bom gosto, não há pecado nenhum nisso, há?
– Mas bom gosto de quem, pra quem? Quem ensinou esse bom gosto, quem disse que era bom? Bom gosto é o “seu” gosto, é assumir o que você sinceramente quer.
– Você tá muito filosófico hoje, tá demais pra mim.
– É simples, o mundo tá precisando é de mais Bocage e menos Bocuse.
– Bocage? Quem é, algum novo cozinheiro catalão?
– Não, era português. Poeta.
– Mas... cozinhava?
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