quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Neoliberalismo em cheque

Uma biografia não-autorizada do neoliberalismo

O mundo não é plano

Por Luciano Trigo


Não é à toa que a economia
do planeta está em parafuso:
o mundo se divide entre os
que atacam as forças cegas
do mercado e os que
exaltam a sua mão invisível,
e ninguém enxerga direito o
que está acontecendo: “Forças cegas” e
“mão invisível” são expressões carregadas
de valor, que trazem implícitas uma
atitude de endosso ou de rejeição ao livre
jogo do mercado. Nas suas diferentes
etapas, a História do capitalismo pode ser
entendida como um cabo-de-guerra entre
essas duas correntes. Quando uma
fracassa, a outra assume. Uma e outra têm
em comum a noção de que o destino
econômico dos homens é regido por algo
que está além de sua razão e vontade.



Uma e outra também têm em
comum a memória curta.
Morre uma geração, depois
outra, e erros do passado se
repetem, numa versão mais
sofisticada. Depois da crise de
29, por exemplo, ficou
evidente que algum grau de intervenção do
Estado era desejável, ou mesmo
indispensável, para a economia funcionar
de forma minimamente decente (muito
antes, no século XIX, o poeta maranhense
Sousândrade já tinha entendido isso: em O
inferno de Wall Street, ele retratou a Bolsa
de Valores americana como um antro de
agiotas, roladores de dívidas e outros
vigaristas, uma máquina devastadora
concebida para promover o enriquecimento
ilícito de uma minoria vendendo números
falsos e informações fajutas: “— Mas no
outro dia cedo a praça, o stock,/ Sempre
acesas crateras do negócio/ O assassínio, o
audaz roubo, o divórcio,/ Ao smart Yankee
astuto, abre New York.”). Vieram a Segunda
Guerra e o New Deal, e durante décadas os
defensores do mercado aberto foram
confinados a um subúrbio da teoria
econômica.

No final dos anos 70, a
economia americana voltou a
entrar em crise, com altos
índices de inflação e
desemprego. A turma da mão
invisível sentiu que agora era
a sua vez — e voltou com
força total. Depois de um laboratório no
Chile de Pinochet, onde o “punho visível”
americano impôs uma série de medidas
que reestruturaram a economia do país,
uma conspiração de fatores da geopolítica
internacional disparou o processo que
submeteria o planeta a uma dose cavalar de
capitalismo selvagem, nos anos seguintes:

$ Margaret Thatcher, na Inglaterra,
esvaziou os sindicatos, cortou impostos,
reduziu e o papel do Estado e estimulou a
privatização. Seu credo era que o bem-estar
social depende da responsabilidade
pessoal, e não do Governo.

$ Paul Volcker, presidente do Federal Reserve, o Banco
Central americano, mudou o foco da
política econômica americana: entre a
integridade do sistema financeiro e o bem-
estar da população, ficou claro que
prevaleceria o primeiro.

$ Ronald Reagan levou adiante a doutrina,
reduzindo impostos, cortando benefícios
do Estado e desregulamentando diversos
setores da economia, na chamada
Reaganomics.

$ Deng Xiaoping começou a transformar a
fechada China num centro aberto de
dinamismo capitalista.

$ Após a derrocada do Comunismo, a
ortodoxia neoliberal contaminou as
instituições financeiras internacionais. O
FMI se tornou um agente da promoção de
políticas de “ajustamento estrutural” em
países periféricos mergulhados em crises,
como México, Argentina e Brasil.

$ Foi decretado o Consenso de Washington
— um conjunto de regras básicas formulado
em novembro de 1989 por economistas do
FMI, do Banco Mundial e do Departamento
do Tesouro americano. A receita incluía
redução dos gastos públicos, privatização
das estatais, desregulamentação e a
eliminação de restrições ao investimento
estrangeiro direto, conduzindo à
globalização financeira.

Nos 30 anos seguintes, a Suderj
informa, saíram de campo
Keynes e o Estado do Bem-
Estar Social, e voltaram Hayek,
Mises e a Escola Austríaca,
revigorados pelo sangue novo
de Milton Friedman e dos
Chicago Boys, os economistas da
Universidade de Chicago eivados da missão
de espalhar pelo mundo o fundamentalismo
de mercado. Desregulamentar e privatizar se
tornaram as palavras de ordem do novo
anarco-capitalismo predatório. Mas dessa
vez capricharam: uma doutrina há muito
descartada foi transformada num verdadeiro
credo religioso, ao qual não havia
alternativa.O neoliberalismo nos foi vendido
como um horizonte insuperável, como a
linha de chegada da humanidade: nos
fizeram acreditar que o jogo tinha acabado,
e que a História concluíra seu curso — com
o triunfo definitivo do ideário neoliberal. O
país que não privatizasse, não liberalizasse,
não desregrasse, seria simplesmente expulso
da civilização. Qualquer tentativa dos países
pobres de resistir à expansão imperialista da
potência dominante passou a ser rechaçada
como protecionismo retrógrado: o novo
mercado globalizado exige a aceitação
incondicional das regras estabelecidas pela
economia dominante, que desconhece
fronteiras e se sobrepõe aos Estados. A
soberania se tornou uma ficção.

Sartre escreveu que o
marxismo era “o horizonte
insuperável de nosso
tempo”. No seu lugar entrou
a religião do mercado, com
pretensão científica e
aspiração à universalidade.
O mundo é plano, concluiu-
se, e o “novo capitalismo” era o único
concebível neste planeta agora sem
barreiras e de valores homogêneos: a
suprema conquista da humanidade, o
novo horizonte inultrapassável, que fez
tabula rasa de todas as lições do passado,
de toda a História do pensamento
econômico.

A arquitetura financeira global
se tornou basicamente a de
um imenso e desregulado
cassino, no qual a
complexidade crescente das
operações financeiras (com
operações de arbitragem,
derivativos e alavancagens de arrepiar os
cabelos) camuflava o seu alto risco, a sua
falta de lastro e o seu caráter fraudulento.
E de repente, não mais que de repente, o
castelo de cartas começou a ruir. Pior:
como os bancos se tornaram estreitamente
interdependentes por meio de uma cadeia
de tomadas e concessões de empréstimos,
seguros e resseguros, nessa economia de
vasos comunicantes o risco de contágio
ficou cada vez maior; quando o bicho
pega, as instituições financeiras dão
sucessivos “abraços de afogado” umas nas
outras e nos seus clientes, arrastando a
todos para o fundo – a não ser,
ironicamente, que o Estado intervenha
para salvá-las, recapitalizando empresas
que nada produzem.

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Em 1980, eu era adolescente,
estudava numa escola
pública (Colégio Pedro II) e
não fazia a menor idéia do
que estava para acontecer
no planeta. Mais tarde, fui da
primeira geração da minha
família a entrar numa universidade
(também pública) e nessa altura já havia
sinais claros de que algumas expectativas
minhas eram ilusórias. Por exemplo, eu
achava que oferecer educação de
qualidade (como saúde, o transporte, a
segurança, a Previdência etc) era um
dever do Estado, que devolveria assim à
sociedade os impostos que arrecadava.
Acreditava também que, na vida
profissional, como na acadêmica, o
sucesso e o fracasso seriam determinados
por critérios meritocráticos.

A primeira ilusão dispensa
comentários: além da venda
ou desmantelamento de
empresas públicas, de lá
para cá todos aqueles
direitos elementares foram
convertidos em bens e
serviços, pelos quais é preciso pagar (pois,
como agora ficou claro, o dinheiro que o
Governo arrecada precisa ficar reservado
para socorrer instituições financeiras em
perigo, mesmo nos Estados Unidos, e
manter o cassino em funcionamento).

A segunda é mais sutil, porque
diz respeito a uma mudança
na alma das pessoas – o tipo
de mudança que Oscar
Wilde investigou num texto
de 1891, A alma do homem
sob o socialismo, quando a
ameaça era outra. Pode parecer incrível
aos mais jovens, mas apenas 20 ou 25 anos
atrás ainda existiam coisas mais
importantes que o dinheiro. As pessoas
dispunham de menos confortos, mas algo
tornava a existência menos frágil, insegura
e irracional do que é hoje – talvez uma
ilusão de ordem, mesmo que no Brasil as
regras nunca tenham funcionado direito;
curiosamente, agora que vivemos sob o
signo da precariedade, sem nenhuma
garantia de coisa alguma, a propaganda de
que estamos no melhor dos mundos é
cada vez maior. Nunca antes, na História
deste país e do mundo, realidade e
discurso estiveram tão descolados.

Mas, de todas as mudanças
provocadas pelo ciclo
neoliberal que ora dá sinais
de exaustão, a mais
profunda, aquela que
causou estragos maiores, foi
a que aconteceu no interior
de cada indivíduo, a corrupção da alma do
homem sob o neoliberalismo. Também deve
ser difícil acreditar, mas a ganância, o
egoísmo, a cobiça e a vontade de se dar bem
a curto prazo e a qualquer preço, passando
por cima dos outros e de qualquer freio
ético, eram até mal vistos. Mentir e trapacear
para subir na vida eram sinais de deficiência
de caráter. Idéias e ações eram medidas por
outro metro, não pelo puro resultado
monetário que proporcionavam. Em suma, o
mau-caratismo, hoje transformado em virtude,
era moralmente condenado.

Ao homem neoliberal nada
disso importa, pois ele sabe
que o mundo
contemporâneo flexibiliza
todos os valores. Só não
perdoa o fracasso. Sua ética
neodarwiniana é a da
competição desregrada: o ganhador leva
tudo, ignorando-se custos sociais e limites
morais: os meios, o aqui e o agora,
justificam os fins, as conseqüências
sombrias que nos aguardam no futuro, em
custos sociais e destruição do ambiente. O
certo e o errado são medidos pelo
desempenho, deixaram de ser valores
abstratos. O melhor caminho é sempre
seguir a direção do vento.

A felicidade, aliás, virou uma
obrigação individual —
medida, naturalmente, em
índices de consumo. Nossa
felicidade deve passar por
cima das mazelas sociais,
dos sofrimentos alheios, da
mesma forma que o imperativo do lucro
fácil despreza prejuízos causados a
terceiros, incluindo as gerações futuras.
Elas que se virem. Neste novo modelo —
sutilmente coercitivo — de
comportamento, os bem-sucedidos têm
direito à insensibilidade e à
irresponsabilidade, e quem não consegue
ser feliz é simplesmente um incompetente.
Os excluídos deixaram de ser vítimas
inocentes, aliás: são agora culpados de sua
própria miséria. Eles, os não-consumidores,
nem entram mais na pauta de discussões
de quem manda de verdade no planeta.



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O neoliberalismo não é mau em
si – só não passou no teste da
realidade. Em tese, a sua
equação poderia funcionar:
com menos impostos, sobra
mais dinheiro para a
produção, aumentam os
empregos, e a mão invisível cuida de
resolver problemas nos quais o Estado se
mostrou incompetente. Paradoxalmente, o
socialismo viveu um problema parecido: em
tese seria maravilhoso, se todos fizessem o
dever de casa; mas não é assim que as
coisas acontecem no mundo real. Hayek
enxergou nos perigos do crescimento do
Estado o caminho da servidão, mas a sua
ausência levou a outro tipo de escravidão: a
que transforma os seres humanos em
escravos do dinheiro, ou, pior ainda,
combustível voluntário para a reprodução
de um capital sem rosto. Somos todos
mercadorias descartáveis.

O fato é que a hegemonia
neoliberal das últimas
décadas não melhorou a vida
das pessoas comuns, ao
contrário: ampliou e
fomentou as desigualdades
sociais, embora tenha sido
muito bom para os ricos: o de cima sobe, e
o de baixo desce. Por sua vez, estimulada a
cair na armadilha do crédito fácil e do
endividamento, a classe média, cada vez
mais, vive pagando e morre devendo. E isso
numa sociedade crescentemente violenta,
avessa a instituições e incapaz de regular
conflitos – uma sociedade na qual as
fronteiras entre certo e errado, legal e ilegal,
são cada vez mais tênues. (A política,
desnecessário dizer, perdeu relevância.
Eleições se transformaram em encenações
nas quais todos os candidatos apresentam a
mesma plataforma, sendo eleitos os que
têm mais recursos e compromissos,
enquanto escolas, hospitais, estradas e
aeroportos caem aos pedaços.)

Mas o que esperar, agora que
a aparente incapacidade
para se resolver a crise pode
provocar o fim do ciclo
atual? Se o vento passar a
soprar para outro lado, em
breve os economistas no
poder estarão pontificando sobre mecanismos
de regulamentação, a criação de mais estatais
e outros mecanismos de fortalecer o Estado.
Quando os sinais se inverterem novamente,
governos populistas, como os que já se
multiplicam na América Latina, retomarão o
discurso nacional-desenvolvimentista de
meados do século passado, dando início a
um novo ciclo da turma que combate as
forças cegas. Vícios e fórmulas fracassadas do
passado podem voltar a prevalecer, bem
como práticas clientelistas que, a pretexto de
incluir, afastam do debate político as classes
mais pobres. Mas talvez isso enseje, ao
menos, uma reformulação de valores básicos,
um recondicionamento da alma dos
indivíduos. Por insensata que seja, a
engrenagem voltará a se movimentar. A
História não acabou. O mundo não é plano.

LUCIANO TRIGO é jornalista e escritor
retirado do http://oglobo.globo.com/blogs/logo/default.asp

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