Postado por Luciano Trigo em 18 de Setembro de 2008 às 14:21
Deonísio da Silva lançou recentemente seu sétimo romance, Goethe e Barrabás (editora Novo Século), a história de um professor que encontra no amor pela jovem Salomé uma última chance de redenção, após ter feito - ou ter sido vítima de - escolhas erradas na vida.
Deonísio da Silva (Siderópolis, SC, 1948) hoje vive no Rio de Janeiro, onde leciona na Universidade Estácio de Sá. Ele sempre conciliou a literatura com a docência universitária e uma ativa colaboração na imprensa. É doutor em Letras pela USP, com uma tese sobre os livros proibidos no Brasil no período pós-64, e autor de mais de 30 obras, entre eles mulher silenciosa (1981); A cidade dos padres (1986); Orelhas de aluguel (1988); Avante, soldados: para trás (1992), prêmio internacional Casa de las Américas; Teresa (1997) e Os guerreiros do campo (2000); além de estudos sobre etimologia, como De onde vêm as palavras (1997).
G1: Foram oito anos escrevendo Goethe e Barrabás. Por que tanto tempo? E de que maneira este livro se distingue de seus sete romances anteriores?
DEONISIO DA SILVA: Ao me transferir de São Carlos para o Rio de Janeiro, as mudanças foram muitas. Morando no interior de São Paulo, eu ia de minha casa à universidade, ou a qualquer lugar da cidade, em 10 minutos. No Rio, dirigindo o curso de Letras da Universidade Estácio de Sá, que está em 18 campi, eu levo um bom tempo no trânsito…Tem sobrado menos tempo para escrever. Além do mais, eu gosto muito de ler. E, à medida que lia sobre Goethe, autor de minha predileção, por temas e problemas, e especialmente por suas sutis complexidades de narrador e poeta, eu ia me encantando por muitos outros assuntos. A maior diferença entre Goethe e Barrabás e meus outros romances é que nele eu cumpri, com menos amarras, um conceito que tenho: o escritor é a lenha de sua própria fogueira. Como disse Mário de Andrade num poema, há uma gota de sangue em cada dia que passa, em cada página que escrevemos. Uma ou muitas. Meus antigos colegas de seminário me dizem que o final de Goethe e Barrabás anuncia um iminente governo autoritário no Brasil. Eu acho que as tentativas têm sido muitas, e algumas já pegaram, como essa mania de bisbilhotarem todo mundo, protegerem culpados notórios e manterem nos cárceres ou perseguirem gente comprovadamente inocente ou cujas culpas não foram provadas. O Brasil anda muito desarrumado. Goethe dizia que preferia a injustiça à desordem. É uma frase que me faz pensar muito.
G1: Escrever Goethe e Barrabás exigiu muita pesquisa?
DEONÍSIO: Quanto ao cuidado com a pesquisa histórica, no caso biográfica, Goethe e Barrabás não tem o tom que alguns consideram pernóstico em A Cidade dos Padres e Teresa D’Ávila. Já outros romances meus, como A Mulher Silenciosa, Orelhas de Aluguel e Os Guerreiros do Campo, não podem ser classificados como históricos, e as pesquisas ali são de sentimento, escandalizado que estava eu com o que acontecia no Brasil, naqueles anos em que eu os escrevia. Avante, Soldados: Para Trás, alcançou um tom raramente visto nos anteriores. Tenho especial carinho por este romance. Depois de ser publicado em Cuba e em Portugal, sairá na Itália este ano, e minha mãe era filha de italianos. Avante é baseado na Retirada de Laguna, episódio trágico da Guerra do Paraguai, que, não fora o escritor francês Visconde de Taunay estar na expedição, teria se perdido como se perdem tantas coisas no Brasil.
G1: O tema do livro são as escolhas erradas que fazemos ao longo da vida. Segundo que critérios uma escolha deve ser considerada certa ou errada?
DEONÍSIO: É melhor ouvir seu coração. Ele se engana menos do que a sua cabeça. Conversei muito com a escritora e psicanalista Betty Milan quando escrevia Goethe e Barrabás. Juntos discutíamos valores que são muito caros ao Brasil, como a hipocrisia, a aparência e o papo nubloso, que entre nós substituem a franqueza, a essência e a conversa clara. A impressão que damos é que nós, brasileiros, gostamos de ser enganados. É só dar uma rápida olhada em quem escolhemos para os cargos, para ministros, para autoridades. E não me refiro apenas à política.
G1: O personagem Barrabás é ex-seminarista, escritor e professor universitário, como você. Em que medida o livro é autobiográfico? Fale também sobre os elementos da trama que foram inspirados na sua família.
DEONÍSIO: Barrabás não sou eu, não, mas, para quem me conhece, é divertido o exercício de identificar em quê ele se parece comigo. Sou homem de poucos amigos, e todos se parecem com Barrabás, têm qualidades que Barrabás também tem, como a solidariedade na hora adversa e a repulsa total a quem nos abandonou quando mais precisamos da pessoa em quem confiávamos. Sabe o que você mais vê hoje no Brasil? Judas Iscariotes! Estou vendo muita gente vendendo amigos, ou ex-amigos, por 30 dinheiros. Ou por mais, ou por menos. O principal negócio, porém, vem sendo a compra e venda das almas. Quanto à presença de minha família, acho que se deve a um traço comum a muitos escritores, nada singular. Meu avô materno, italiano, era grande narrador, licencioso e libidinoso. Acreditava no sexo, nos prazeres, não no amor, que, como sabemos, é uma invenção de culturas clássicas, com a de gregos e romanos. Antes triunfava apenas o cio. Meu avô era pré-tudo. Já minha avó materna acreditou no amor, contrariou o pai e casou com o homem por quem se apaixonara, dando um prejuízo danado a toda a “árvore ginecológica”, expressão que acho melhor do que “árvore genealógica”, por ser mais condizente com o que designa. Ouvi muitas histórias da boca de minha avó, mas com o tempo tudo se misturou com minha imaginação, o que é bom para quem tece o bordado da ficção, do inventado.
G1: Por que você acha que, no Brasil das últimas décadas, tantas pessoas venderam a alma ao diabo, como o Mefistófeles de Goethe? Como você analisa isso?
DEONÍSIO: Sem poder fracassar, Mefistófeles volta ao Diabo, queixando-se de não conseguir dissipar tudo o que ganhou com a venda da alma, e se dá aquele diálogo apavorante: “Já experimentou a caridade?”. Não no sentido grego, sinônimo de amor, mas no latino, corrompido por São Jerônimo na versão vulgar da Bíblia, que é atender aos necessitados de bens materiais. Fiquemos tranqüilos. Nem quem compra nem quem vende almas se dá bem. Cedo ou tarde tudo vem às claras e as operações aparecem. No Brasil, porém, este ocultamento está durando muito. Surgem cadáveres, e não sabemos se são de quem comprou ou de quem vendeu.
G1: O povo escolheu libertar Barrabás e crucificar Cristo. As escolhas erradas podem ser individuais, na relação amorosa, mas também coletivas, na vida política. Você já disse que vivemos o mito de que a democracia é o repositário de todos os bens. Mas existe alternativa?
DEONÍSIO: Pois é, governos autoritários fizeram muito bem ao Brasil, como o do Marquês de Pombal nos tempos monárquicos, meu herói em A Cidade dos Padres. Lecionei 22 anos numa universidade federal, para onde entrei por concurso público durante a ditadura militar. E te digo: nenhum governo da ditadura militar pós-64 abandonou tanto a universidade pública como os dois governos democráticos de Fernando Henrique Cardoso, também professor universitário. Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ditador Getúlio Vargas modernizou mais o Brasil do que o democrata JK. Mas eu não sou doido de achar que existe alternativa à democracia. Isso deve ser perguntado ao cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que, aliás, lançou um romance muito bonito, intitulado Acervo de maldizer.
G1: Os nomes do casal de protagonistas, Barrabás e Salomé, foram inspirados em dois personagens trágicos. Como um estudioso da etimologia, ciente da importância das palavras, em que medida você acha que um nome influencia o destino de uma pessoa?
DEONÍSIO: Pergunta sutil, mas eu sou Deonísio. Dioniso é o outro, e pode ser grafado com “y”, jamais com “e”. Há muitas curiosidades quanto a isso, mas acho que, já na escolha do nome do rebento ou da da pimpolha, emergem motivos inconscientes, arquétipos, algumas vinculações com o destino. Como se sabe, ao contrário do que apregoam os credos democráticos, não nascemos iguais, nem perante a vida e muito menos perante as leis. A Igreja, que é sábia, muda o nome de homens e mulheres que entram para ordens religiosas. Pois se mudou o destino, o modo de viver…
G1: Por que muitas mulheres, como a personagem Salomé, escolhem mal os homens que amam? E por que você diz que Satanás detesta fazer negócio com mulheres?
DEONÍSIO: Pois é, a mulher apaixonada faz escolhas insensatas, mas se as fizer sóbria dessa embriaguez do amor e da paixão, não escolherá homem algum! Nós somos de outra espécie, cara! Mamão, andorinha, homem, chinchila, mulher, todos diferentes, todos de outras espécies. Satanás sempre é enganado por mulheres. Lilith, a Lua Negra, a primeira mulher de Adão, depois substituída por Eva, em divórcio litigioso, botou chifres em Lúcifer e o novo marido numa fria, num abismo, num precipício danado. Foi o primeiro negócio de Satanás com mulher! Depois veio Nossa Senhora e arrebentou com ele, atrapalhando muito o negócio de compra de almas. Teresa D’Ávila, então, goleou Satanás. Ela pecou muito, mas ele perdeu.
G1: Você foi seminarista e já disse que hoje há missas tão modernas que “só falta a Flávia Alessandra dançar em alguma coluna da nave da igreja”. Você acha que a igreja católica está em crise?
DEONÍSIO: Está em crise, talvez em coma já. Mas Bento XVI e suas equipes no mundo inteiro - a Igreja é multinacional, como sabemos - estão trabalhando muito, e vamos nos recuperar. A principal carência do mundo hoje é de recolhimento, de meditação. Igrejas e templos foram transformados em outra coisa, em silos, depósitos. Onde você busca a transcendência? Nos templos e igrejas? Muito raro que lá você sinta isso. No cinema e no teatro, na leitura, nos museus… Mas nas igrejas? Acho que não.
G1: Como você analisa a situação da literatura brasileira hoje? E o mercado editorial? E a imprensa pautada pelas listas de mais vendidos?
DEONÍSIO: A literatura brasileira é riquíssima. O mercado editorial está bom, mas está concentrado, como tudo no Brasil, em mão de poucos. Já a imprensa, a mídia, está uma vergonha danada em termos de literatura. Ela faz apagamentos que nenhuma ditadura militar alcançou. O livro proibido ainda existe, mas o apagado pela mídia sobrevive como sobrevivem as crianças a altas taxas de mortalidade infantil. Freqüentemente leio livros excelentes, que a mídia não viu, não registrou. E evito com muita freqüência ou largo livros que comecei a ler e não pude continuar, de tão chatos e mal escritos, apesar de elogiados.
Retirado do blog http://colunas.g1.com.br/maquinadeescrever/
Em terra de cegos
Postado por Luciano Trigo em 28 de Agosto de 2008

Saramago para Fernando "estou tão feliz por ter visto esse filme… Como eu estava quando acabei de escrever o livro”, diz José Saramago, com a voz embargada, ao cineasta Fernando Meirelles, após uma projeção privada do filme Ensaio sobre a cegueira [Blindness]. “Você não sabe como isso me deixa feliz”, responde Fernando, dando em seguida um beijo na careca do escritor, Prêmio Nobel de Literatura em 1998 (o primeiro concedido a um escritor de língua portuguesa) e autor dos consagrados Memorial do convento, A jangada de pedra (que também já foi adaptado para o cinema) e O Evangelho segundo Jesus Cristo.
Gravada de forma amadora (e talvez clandestina) a cena, acessível a qualquer pessoa que acessar o Youtube (http://www.youtube.com/watch?v=Y1hzDzAvJOY), é comovente: mostra a comunhão de dois artistas e de duas linguagens, o reconhecimento da possibilidade de diálogo verdadeiro entre o cinema e a literatura. Mas não vou falar aqui do filme, que está sendo lançado com grande estardalhaço no Brasil, com direito á presença da atriz Julianne Moore. Vou falar da literatura de José Saramago.
A leitura dos romances de Saramago não é fácil. Seus períodos longos, seu uso nada convencional da pontuação (há páginas inteiras sem ponto final, pródigas em vírgulas, e alguns parágrafos têm a extensão de um capítulo), sua incorporação dos diálogos ao corpo do texto, fundindo-se aos pensamentos, sem travessões, seu estilo deliberadamente reiterativo - tudo isso resulta em estruturas narrativas complexas, pautadas pelo fluxo da consciência, que exigem do leitor uma disposição incomum, nada passiva. A carreira de Saramago é peculiar. Depois de publicar Terra do pecado, em 1947 ele passou trinta anos sem escrever romances – até lançar Manual de pintura e caligrafia, quando já tinha 53 anos. Seguiram-se Levantado do chão (1982) e Memorial do convento, o livro que conquistou definitivamente a atenção de leitores e críticos, ao misturar fatos históricos reais com personagens inventados. Depois vieram O ano da morte de Ricardo Reis (1984) – para mim seu melhor romance, sobre as andanças do heterônimo de Fernando Pessoa por Lisboa; A jangada de pedra (1986), no qual a Península Ibérica se desprende do resto da Europa e navega pelo Atlântico; História do cerco de Lisboa (1989) e o polêmico O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) – uma releitura humanizadora do livro sagrado. De lá para cá sua ficção ganhou um tom mais fabular, sem laços diretos com a História, mas nem por isso menos preocupados com os rumos da sociedade contemporânea. É o caso de Ensaio sobre a cegueira (1995) e A caverna (2001). Escrever, para Saramago, é uma forma de interrogar o mundo, de pensar criticamente sobre as coisas. Ensaio sobre a cegueira nasceu de uma experiência pessoal: um descolamento de retina, que o escritor sofreu em 1991. O romance trata de uma epidemia de cegueira repentina que assola a população de uma cidade não identificada – metáfora da cegueira geral e infinita dos seres humanos. Em quarentena num manicômio abandonado, os cegos se perceberão reduzidos à sua essência animal. Do lado de fora, aqueles que enxergam se transformam em autoridades, com o poder sobre a vida e a morte dos demais. Do lado de dentro, os cegos confinados se deixam dominar pelos instintos mais primitivos, num verdadeiro inferno. A premissa filosófica é que as pessoas só se tornam realmente quem elas são quando não podem mais fazer julgamentos a partir do que vêem.São páginas de constante aflição, que trazem uma mensagem nada otimista: o ser humano não é bom, e precisamos reconhecer isso. Numa situação desesperadora, a “treva branca” se espalha rapidamente pela cidade, até só sobrar uma pessoa que ainda enxerga: a mulher do médico (interpretada no filme por Julianne Moore), que se finge de cega, para poder acompanhar o marido na quarentena. É ela quem preserva um mínimo de ordem e de valores humanos em meio à cegueira absoluta, é nela que reside um fiapo de resistência e de esperança contra a desagregação social e moral absoluta. Saramago é um pessimista: “Como será possível acreditar num Deus criador do Universo, se o mesmo Deus criou a espécie humana? Por outras palavras, a existência do homem, precisamente, é o que prova a inexistência de Deus”, ele já escreveu. Para o escritor, a humanidade – leia-se a civilização ocidental capitalista – vive tempos sombrios, perdida num caos labiríntico, marcado pela miséria e pela injustiça, pela crueldade e pelo egoísmo, pelo medo e pela culpa. Seu objetivo é chamar a atenção do leitor para a “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Mas em que consistiria essa responsabilidade? Não somente em registrar e ter consciência do horror que nos cerca, mas, sobretudo, em ser capaz de conservar a lucidez, resgatar a solidariedade. Ser capaz de amar mesmo sob as mais terríveis pressões - tarefas que ele compartilha com os leitores. O paralelo evidente é com o romance A peste, de Albert Camus, já que nos dois livros uma epidemia misteriosa provoca o desmoronamento completo da sociedade, de tudo aquilo que se associa à idéia de civilização, ao mesmo tempo em que traz à tona as facetas mais primitivas da condição humana. Ensaio sobre a cegueira é o romance mais desagradável de Saramago: há um desfile brutal e incessante de atrocidades, dejetos, maus cheiros, estupros e outros atos de violência, que acompanham o processo de desumanização dos personagens. Definitivamente, não é um livro para todos os gostos."
Por Luciano Trigo
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